Libertinagem
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A guardiã dos segredos antigos
Na pequena vila de San Martín, aninhada nas montanhas de Sierra Morena, o silêncio sempre teve um peso peculiar. As manhãs começavam com uma calmaria quase palpável, interrompida apenas pelo canto distante dos pássaros e pelo som do vento entre as oliveiras. Mas, ultimamente, algo estranho pairava no ar, um mistério que se arrastava como uma sombra invisível.
 
Clara, uma jovem de vinte e cinco anos, morava com a avó, Dona Amália, na casa mais antiga da vila. Dona Amália era uma mulher de poucas palavras, e seus olhos refletiam uma sabedoria profunda, adquirida ao longo de décadas. Clara, por outro lado, era curiosa e sempre buscava entender o que se escondia por trás das tradições e segredos da vila.
 
Tudo começou quando Clara notou que a avó parecia mais pensativa que o normal. Durante o café da manhã, Dona Amália olhava fixamente para a janela, como se esperasse algo. Depois, murmurava palavras incompreensíveis enquanto mexia o chá, e Clara podia jurar que ouvia nomes antigos sendo sussurrados. Nomes que ninguém usava mais.
 
"Vovó, o que está acontecendo?" perguntou Clara um dia, incapaz de conter sua curiosidade.
 
Dona Amália levantou os olhos lentamente e suspirou. "Há coisas que não se explicam com facilidade, minha querida. Coisas que são melhor deixadas no passado."
 
Mas Clara não se contentou com a resposta evasiva. Ela decidiu investigar por conta própria. Nos dias seguintes, ela começou a andar pela vila, fazendo perguntas discretas aos vizinhos. Cada um deles parecia evitar o assunto, mas todos tinham o mesmo olhar de preocupação ao mencionar a "Casa das Sombras", uma velha construção abandonada na periferia da vila.
 
Determinada a desvendar o mistério, Clara resolveu visitar a Casa das Sombras. Ela esperou o anoitecer, quando as ruas estavam desertas, e seguiu em direção à casa. A construção parecia ainda mais sinistra sob a luz da lua, com suas janelas quebradas e portas rangentes.
 
Ao entrar, Clara sentiu um frio na espinha. As paredes estavam cobertas de teias de aranha e o chão rangia sob seus pés. Ela explorou cada cômodo, mas tudo o que encontrou foram móveis empoeirados e retratos antigos, desbotados pelo tempo.
 
No último cômodo, porém, algo chamou sua atenção. Um baú de madeira, trancado com um cadeado enferrujado. Clara procurou ao redor e encontrou uma chave escondida sob um piso solto. Com as mãos tremendo, ela abriu o baú e encontrou uma coleção de diários antigos.
 
Sentada no chão, Clara começou a ler as páginas amareladas. Descobriu que os diários pertenciam a sua bisavó, Mariana, que havia vivido na Casa das Sombras antes de se casar e se mudar para a casa onde Clara agora morava. As entradas revelavam segredos sombrios sobre a vila – histórias de traições, paixões proibidas e, principalmente, de uma presença misteriosa que Mariana chamava de "O Sussurro".
 
"O Sussurro é um espírito antigo, que vaga pela vila em busca de justiça," escrevia Mariana. "Ele surge nas noites de lua cheia e só é ouvido por aqueles que têm algo a esconder. Sua voz é um murmúrio suave, mas seu toque é frio como a morte."
 
Clara sentiu um calafrio ao ler aquelas palavras. Ela se lembrou das noites em que acordara com a sensação de estar sendo observada, mas sempre achara que era apenas sua imaginação. Agora, tudo fazia sentido.
 
Determinado a descobrir mais, Clara passou a noite lendo os diários. À medida que as horas avançavam, ela ouviu um som fraco, como um sussurro, vindo do corredor. Seu coração disparou, e ela segurou a respiração, tentando ouvir melhor. O sussurro se aproximava, e as palavras pareciam formar seu nome: "Clara... Clara..."
 
A jovem se levantou rapidamente e correu para a porta, mas esta se fechou com um estrondo. O sussurro estava agora mais alto, quase ensurdecedor. "Clara, você precisa saber a verdade. A verdade sobre sua família."
 
De repente, a porta se abriu com um rangido e Clara viu a figura pálida de uma mulher. Ela reconheceu imediatamente – era sua bisavó, Mariana. "O que você quer de mim?" perguntou Clara, a voz trêmula.
 
Mariana sorriu tristemente. "Você é a última de nossa linhagem, Clara. Você precisa quebrar o ciclo. O Sussurro é um espírito de vingança, mas também de redenção. Ele busca a paz, mas só conseguirá se a verdade for revelada."
 
"Mas que verdade?" Clara insistiu.
 
"Nosso sangue está manchado por um crime antigo," explicou Mariana. "Um crime que foi escondido por gerações. Meu pai, seu tataravô, cometeu uma atrocidade para proteger nossa família. O espírito que vaga pela vila é a vítima desse crime. Você precisa encontrar seus ossos e dar-lhe um enterro digno."
 
Clara, assustada, mas determinada, concordou. Com a ajuda dos diários, ela seguiu as pistas deixadas por Mariana e encontrou os restos mortais enterrados sob a velha oliveira na entrada da vila. Na noite seguinte, com a lua cheia iluminando o céu, ela realizou um ritual simples, mas carregado de significados.
 
Quando a última palavra foi dita, Clara sentiu uma leve brisa e um sussurro suave que dizia: "Obrigado." O ar pareceu se iluminar, e uma paz profunda envolveu a vila de San Martín.
 
Clara voltou para casa, exausta, mas aliviada. Na manhã seguinte, Dona Amália a recebeu com um sorriso enigmático. "Você fez bem, minha querida. Agora, o silêncio em San Martín é apenas o silêncio – não mais um peso, mas uma bênção."
 
E assim, a jovem Clara trouxe paz à sua família e à vila, aprendendo que o verdadeiro silêncio é aquele que nasce da verdade revelada.
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Em San Martín, o silêncio agora era um amigo, e Clara, a guardiã dos segredos antigos, encontrara seu lugar na história da vila, eternizada nas páginas dos diários de sua bisavó.
 
Rafael Ruiz Zafalon de Paula
Enviado por Rafael Ruiz Zafalon de Paula em 03/07/2024
Alterado em 03/07/2024
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