Memória de Sofia
Era tarde de outono, o vento brincava acariciando os cabelos longos e soltos de Sofia, que despreocupada, admirava as acrobacias das abelhas que ali rodeavam o perfume das flores. Dois olhos negros a fitavam insolentes, a antipatia foi recíproca. Sensação inquietante a percorreu enquanto sentia-se fisgada pelas mãos, queimadas de sol, enlaçando-a. Não imaginava que a euforia envolvendo seus pensamentos seria amor, sentimento que não dá oportunidade de expectativa, tampouco avisa com antecedência sua forma de manifestação, simplesmente acontece de maneiras inesperadas.
Seria inevitável a existência de um contato íntimo, então, a fez sentir-se completa, quando sua pele já correspondia às carícias mais suaves. A felicidade era plena, aconchegada no calor daqueles braços que a imunizavam de qualquer reação de fuga. No mesmo instante, aqueles olhos rubros a admiravam serenos, e um sorriso tranquilo se fez naqueles lábios macios, realçando os traços da face queimada. Todavia, a insegurança e o receio de perdê-lo a fizeram tremer.
O momento de separação estava próximo, os braços se tornaram mais apertados, os beijos sempiternos e úmidos e as mãos mais atrevidas nas carícias. Mais tarde, seria apanhada pela sensação de vazio e de abandono. As palavras da despedida, permaneceriam nos ouvidos de Sofia:
– “Eu te amo! (...) És minha! (...) Não te aflijas que voltarei!”.
O íntimo de Sofia, em instantes de rebelião pergunta:
– Quando?
Sofia tinha então dezenove anos, o tempo passa e as lembranças permanecem. Sofia guardou tudo o que restou daquele amor; - uma carta, um telegrama, um cartão, as fotografias, que indubitavelmente se deteriorariam com o tempo e as sensações que não envelhecem, são intangíveis, ninguém terá meios de destruir. Poderiam apenas fazê-la revisitar velhas cicatrizes, quiçá descobrir um outro amor, que não de esperas e lembranças.
Foram muitas as vezes que o procurou para confessar o mesmo amor. Cativou a brisa da noite, que lhe consumia as lágrimas de saudades. Tantas foram as vezes que Sofia tentou substituí-lo, entretanto, todas as tentativas foram em vão.
Após tantas buscas, o encontrou junto à outra. A dor de saber que a substituíra e que recebia tudo quanto desejava para si, a fez resolver o futuro. Porém, o arrependimento daquele reencontro superava a angústia em casar-se com outro, amando-o como amava. Falsas as promessas, os carinhos, a espera, ilusões que somente ela alimentou.
Daquela união logo desfeita, Sofia gerou uma filha, e transferiu a ela toda dedicação sufocada no seio. Trabalha, diverte-se, tem amigos, mas não quer envolvimentos emocionais, talvez preserve ainda uma tênue esperança de algum dia redescobrir os mesmos olhos, os mesmos lábios, o mesmo sorriso e tudo mais que o compusera, até mesmo alguns fios de cabelo prateados, provando que para ele também o tempo passou.
Muitas vezes, se entrega às doces lembranças daqueles dias, tantos anos se passaram, talvez trinta ou quarenta, não importa. Brincando e sorrindo, percorre a imensa cidade, milhares são as pessoas que por ela passam, e em cada fisionomia, busca traços daquele mesmo amor, mas não existe identificação, traçado único.
Quem sabe algum dia, Sofia encontrará alguém que consiga em seu peito, reacender a chama da paixão aprisionada, alguém que a faça superar o sentimento pulsante das recordações insensatas.
No silêncio da noite, relembra os olhos profundos medindo-a, pensa na leveza das carícias e nos beijos apaixonados, e a mesma voz se faz ouvir:
– “Te amo! (...) És minha (...)
É o fantasma da saudade, apenas sopro de memória.
A realidade de hoje é diferente. O sorriso infantil de sua filha a libertara das correntes que a prendiam ao passado, dos poucos casos inconsequentes que arriscara nos últimos anos.
A saudade já não é tão amarga.
Com um gesto, afasta os fantasmas do passado e sorri para a filha, seu presente.
A partir das memórias e contos de minha amada avó Sandra.